Olá, sadists!
A década de 80 popularizou algumas das maiores modelos de passarela da história, como Christy Turlington, Naomi Campbell, Cindy Crawford, Linda Evangelista e Claudia Schiffer. As estrelas dessa onda fashion eram mulheres magras mas voluptuosas, que vestiam roupas altamente coloridas e estampadas, muito neon, cabelo impecavelmente arrumado e que vendiam um lifestyle de “magreza como sinônimo de saúde”, incentivando exercício físico e dietas repletas de alimentos saudáveis (a famosa época da popularização das fitas cassete de ginástica para fazer em casa, protagonizadas por celebridades). Mas quando o mundo da moda menos esperava, uma adolescente rebelde e de estilo punk foi casualmente fotografada exibindo seu estilo punk em uma pista de dança, e sua foto foi parar nas mãos de grandes empresários do ramo fashion, fazendo com que a garota, a jovem estadunidense e filha de italianos, Gia Carangi, se tornasse o novo rosto da moda. Acontece que a garota rebelde apesar de esbanjar talento como modelo, em poucos anos caiu direto das capas de revistas renomadas ao anonimato total. O grande culpado da queda da estrela em ascensão foi o seu vício em heroína, droga que estava se popularizando naquela época, e que, por ser injetável, deixava marcas e feridas pelos corpos dos usuários. Gia não era mais convidada a desfilar ou posar para grandes fotógrafos (ou qualquer fotógrafo) por conta de suas visíveis marcas de injeção, e eventualmente, por sua fadiga que era causada majoritariamente pela mistura de seu vício em drogas e bebida com a doença de AIDS que a modelo contraiu devido ao uso contínuo de seringas comunitárias. Ao final da década de 80, Gia já havia sido levada pela doença, aos 26 anos de idade. Um filme sobre sua breve e selvagem vida foi feito em 1998, com Angelina Jolie no papel principal (fica a minha recomendação, já que o filme é excelente).


Gia Carangi é muitas vezes apontada como a pioneira do estilo Heroin Chic, já que exibia looks repletos de cores sóbrias, jaquetas de couro, olhos fundos tingidos de preto, cabelo desarrumado e estava sempre com um cigarro e um copo de bebida em mãos. Além de, claro, apresentar um vício em heroína. Apesar de sua vida, e carreira, terem sido terminadas tão rápido, Gia é até hoje apontada como a primeira supermodel do mundo. Com a chegada dos anos 90, novos rostos estampavam as revistas de moda e exibiam seus catwalks pelas passarelas, mas com um novo, e radicalmente, diferente estilo do popular na década anterior. As supermodels estavam em alta e eram cada vez mais esbeltas, de maneira visivelmente não saudável, e as cores sóbrias vieram como uma antítese às cores vibrantes dos anos 80. E foi nessa mesma época que movimentos culturais como o Grunge atingiram o público jovem em cheio, trazendo para dentro do mundo da moda a glamurização das drogas. A droga da qual estamos falando especificamente nesse artigo, a heroína, era considerada ate então uma droga nada glamurosa, já que além de envolver picadas de agulha pelos braços e pernas dos usuários, ainda foi uma das grandes responsáveis pela epidemia de AIDS nos EUA e Europa. Mas com novas versões da droga chegando ao ‘mercado’ norte-americano e britânico, onde os jovem podiam simplesmente inalar a substância, o estigma e a marginalização da heroína deram espaço para a ascensão dela entre os jovens de classe média alta.


E a nova droga do momento acompanhava, sem faltar, os músicos da era Grunge que estavam em crescente como os membros das bandas Nirvana, Pearl Jam, Smashing Pumpkins, Alice in Chains, Hole e Stone Temple Pilots. E também passou à acompanhar as topmodels mais desejadas e copiadas do mundo, como por exemplo, as maiores precursoras do Heroin Chic, a britânica Kate Moss, a belga Tanga Moreau e a estadunidense Jaime King. A cantora Fiona Apple também aderia ao estilo de vestir-se da polêmica trend. Quando se ligava a televisão ou ia ao cinema, era cada vez mais comum dar de cara com protagonistas fictícios viciados em drogas, afinal, os anos 90 nos trouxeram clássicos cinematográficos como Pulp Fiction, Kids, Girl Interrupted e Transpotting. As passarelas e photoshoots foram tomados pela maquiagem apagada, o aspecto de ressaca de balada, os cabelos cheios de nós aparentes, o batom escuro borrado, os ossos expostos, o cigarro e a sujeira misturados à peças de roupas luxuosas como casacos e coletes de pele, jaquetas de couro, salto alto, e campanhas publicitárias para grifes de alta costura. Alguns dos ensaios fotográficos mais conhecidos por terem abordado de forma ‘glamurosa’ o Heroin Chic foram as dos perfumes da marca Calvin Klein em 1993 . Os ensaios do CK Be, do CK One e do Obsession traziam estrelas como Kate Moss, Jaime King e Vincent Gallo em P&B, sem maquiagem, magérrimos.



E por trás das ‘musas’ do Heroin Chic, estavam os fotógrafos e artistas que ajudaram a criar esse conceito e torna-lo pop. Os principais nomes da cena são os da inglesa Corinne Day e o do italiano Davide Sorrenti, que fotografaram inúmeras vezes as modelos citadas acima, além de, eles próprios serem usuários de heroína. Em 1990, Corinne descobriu uma Kate Moss adolescente e ficou fascinada por seu traços fora do padrão e especialmente por seus hábitos de ‘garota comum’ como fumar cigarros, frequentar festas em galpões abandonados, raves da nova onda do Verão do Amor que estava rolando no UK. Kate se tornou sua musa e juntas elas quebraram os padrões estéticos da década anterior, como por exemplo, com o photoshoot 3rd Summer of Love, fotografado por Corinne e protagonizado por Kate para a revista alternativa The Face. Diversos designers que também não se encaixavam nos padrões estéticos luxuosos dos 80s se sentiram inspirados por esse ensaio de fotos, como Alexander McQueen e Marc Jacobs. Muito dessa trajetória disruptiva pode ser vista no livro Champagne Supernovas, da autora Maureen Callahan (2014). A criação do conceito de Heroin Chic em forma de editoriais de moda não era suficiente para os fotógrafos, que levaram o lifestyle perigoso para suas vidas pessoais, causando a morte precoce de Sorrenti aos 20 anos de idade por uma suposta overdose da droga. Com a morte do artista, em 1997, todos os billboards e as revistas cessaram, quase imediatamente, a exibição do estilo Heroin Chic. A fotógrafa de moda Francesca Sorrenti, mãe de Davide, alegou que o filho sofria de alguns problemas de saúde, e que uma quantidade muito pequena de heroína foi encontrada em seu sangue, mas que isso já foi suficiente para conectarem a morte do jovem à tal febre da ‘heroína chic‘. Francesca declarou também “Isso é heroína. Isso não é chic. Isso tem que parar, essa heroin chic“. Após a morte do filho, Francesca juntou-se a outros nomes da moda e da fotografia para criar uma campanha contra as drogas. Sobre essa conquista e o legado do filho, ela declara “[…] salvou a vida de muitos jovens e acabou de vez com o heroin chic […] Esse é o seu legado, e é um dos bons.”
O controverso mas também muito querido fotógrafo foi celebrado em um documentário biográfico chamado See Know Evil, com fotos pessoais, relatos de familiares e amigos, filmagens caseiras de sua adolescência, e depoimentos de celebridades que passaram bastante tempo ao seu lado como a própria Jaime King, Mila Jovovich, e outros. O documentário é descrito como uma visão sem censura da vida e obra do fotografo fashion dos anos 90 e ícone cultural da juventude da época.
Sobre Corinne Day, a artista costumava trabalhar como modelo mas, em uma viagem a Ásia, acabou descobrindo sua paixão em ficar atrás das câmeras ao invés de a frente delas. Corinne Day foi a responsável por fotografar a primeira capa de Kate Moss para a Vogue Magazine em 1993, mas seu estilo de fotografia era mais ‘caseiro’ já que ela tinha uma paixão por fotografar pessoas conhecidas e amigos, e focar em exibir imperfeições corporais e o naturalismo da vida. A fotógrafa também clicou nomes como Linda Evangelista, Gisele Bündchen, Alexander McQueen e Kirsten Dunst.







Em relação aos Estados Unidos, a heroína era predominante da cidade de Seattle, que até mesmo foi classificada por Courtney Love como “a meca das drogas, onde a heroína é mais fácil de se obter do que em San Francisco ou Los Angeles“. A vocalista da banda grunge Hole sabe muito bem do que está falando, já que convivia diariamente com os membros da cena musical de lá, e inclusive foi casada com Kurt Cobain, vocalista da, hoje, mais conhecida representante do estilo grunge, a banda Nirvana. Grandes nomes da música da década de 90 como Kurt Cobain, Mike Starr (Alice in Chains) e Jonathan Melvoin (The Smashing Pumpkins) eram usuários da droga e morreram ou por overdose ou por fatores que desencadeavam seus vícios, como as doenças emocionais. O que a estimulante cocaína representava nos anos 80 era socialização, diversão, celebração e energia como um reflexo daquela década que era repleta de pessoas ‘felizes e animadas’, enquanto a heroína representava um refúgio de seus problemas e dores, um casulo para te proteger de um mundo cruel, por isso era tão famosa entre artistas que sofriam de depressão, ansiedade, bipolaridade, etc. Os jovens já não se sentiam representados dentro de uma sociedade que exigia felicidade constante, alta energia que causava exaustão, e roupas que se vendiam graças à modelos e artistas sorridentes montados em esteiras de academia e cobertos de tinta neon.
O fotógrafo Davide Sorrenti era namorado da modelo e atriz Jaime King, e como mencionado anteriormente, ambos eram viciados em heroína e adeptos do estilo Heroin Chic. Duas das imagens mais populares e assustadoras desse período são fotografias feita por Sorrenti que clica Jaime King em P&B espetando uma seringa cheia em seu corpo e rasgando sua calça com uma faca, enquanto exibe uma aparência apática sentada em um imundo sofá. Também é possível notar uma foto de um Kurt Cobain ainda criança na parede atrás de Jaime. A romantização das drogas e da magreza excessiva estavam começando a alarmar o público mainstream. Aliás, outra característica dessa época era produzir ensaios fotográficos caseiros, com fotos desfocadas e maquiagem desleixada. Os cenários dos tais photoshoots incluíam quase sempre quartos, hotéis, carros e banheiros, todos repletos de pacotes de cigarro, garrafas de bebida, pilhas de roupas jogadas, isqueiros, e parafernálias que mostrassem a bagunça do ambiente num geral. E os looks não eram tão glamurosos como os que as musas do Heroin Chic gostavam de exibir nas saídas dos Night Clubs, e sim roupas rasgadas, manchadas, extremamente largas, e até lingeries. Os pés muitas vezes estavam descalços e imundos, mas não faltava sombra nos olhos e batom nos lábios.


Aos que acreditam no Heroin Chic Style como apenas uma estética e um figurino, e não como uma forma de viver e apoiar o uso de drogas, o estilo apresenta apenas o defeito de ser nomeado ‘heroína chic‘, já que expressa a polêmica junção de dois mundos muito distantes: a dependência de drogas e a decadência que o vício causa contrastando com uma vida repleta de dinheiro, glamour e luxo. Nas palavras de Jefferson Hack, co-fundador da famosa mídia de moda e beleza Dazed:
“O mundo da moda tem a responsabilidade de lidar com problemas. Seria muito mais destrutivo se a moda exibisse apenas pessoas sorridentes e felizes. O mundo da moda têm tido que lidar com problemas da vida real desde a década de 80, e a heroína já infiltrou-se em todas as áreas da sociedade. Ignorar isso é perigoso”.








Apesar do polêmico estilo ter criado uma má fama, sendo considerado responsável pelas mortes e overdoses de milhares de jovens, o Heroin Chic só começou a desaparecer quando o então presidente dos EUA, Bill Clinton, deu uma declaração em 1997 de que “a indústria fashion estava há anos fazendo com que o vício parecesse sexy e cool, o que não era saudável“. Esse discurso deu-se a partir da morte do fotografo Davide Sorrenti, 3 meses antes. Durante o documentário biográfico sobre Sorrenti See Know Evil (2018), é possível ouvir mais polêmicas falas do presidente Clinton sobre a indústria da moda. A partir de então, o mundo da moda passou a investir novamente na ideia de que as modelos eram saudáveis, cheias de vida, sensuais, e o principal rosto dessa transformação foi a supermodel Gisele Bündchen. A modelo recebeu uma matéria da Vogue inteira sobre ela com o título “O Retorno da Modelo Sexy“. Apesar de Gisele ser tão magra quanto todas as outras modelos da década de 90, ela parecia ser um novo rosto por ser uma brasileira (pele bronzeada, seios grandes, e um derrière, como dizem os franceses, mas que nós chamamos de bunda mesmo). A própria Gisele Bündchen admitiu que foi o principal rosto dessa mudança na indústria das passarelas em uma recente participação na conta oficial de youtube da Vogue Britânica(Vogue UK). A supermodel disse o seguinte enquanto revisitava seus mais icônicos looks ao longos dos anos no quadro Life in Looks:
“[…] Eu me lembro de ir à todos esses castings na época e ninguém querer nem olhar o meu portfolio porque estávamos na Era Heroin Chic e eu não me parecia nada com o heroin chic, obviamente […]”
Ainda durante a sua participação no quadro Life in Looks, Gisele também comentou sobre a famosa capa de 1999 da Vogue, que foi estampada por diversas modelos icônicas juntas, inclusive a modelo brasileira bem ao lado de Kate Moss.
“Essa foi uma capa com Kate, Iman, Lauren Hutton, eu. Eu tinha 19 anos, foi muito especial estar lá com aquelas mulheres lindas. Era como se representassem as modelos de cada ano […] Eu era considerada o rosto dos anos 2000, e Kate era dos anos 90.”
O grande ponto de virada foi justamente na transição de uma década para a outra, já que no ano de 2000, Gisele estampou pela primeira vez sozinha, a capa da revista Vogue. O ensaio, que foi fotografado por Irving Penn e roteirizado por Philip Weiss, tinha o título “The Return of the Curves” (O Retorno das Curvas). Sobre esse acontecimento, a modelo Nicole Phelps declarou “A ironia de Gisele ser colocada em uma edição da revista sobre curvas […] É que ela era tão magra quanto as modelos que a antecederam, mas ela era alta, ela tinha seios, ela tinha uma bunda, e isso a tornava suficientemente diferente a ponto de representar a ideia de curvas.”






Há críticos de moda e historiadores que acreditam que o Heroin Chic era muito menos sobre o uso da romantização do vício em drogas como forma de vender roupas, mas muito mais a moda refletindo os sentimentos da população da época. Considerando que as décadas que antecederam os ’90s foram todas construídas a base de capitalismo selvagem, imagens de mulheres impecáveis e pessoas ‘sem defeitos ou problemas‘ contrastando com horríveis acontecimentos históricos como guerras, serial killers à solta e uma assustadora crescente da tecnologia, faz todo o sentido que a última década daquele século refletisse o resultado de toda essa bagunça anterior. No artigo High Fashion, Heroin Chic da Hunger TV, o autor Max Grobbe declara:
“[…] As acusações de que a moda estava conectada ao uso de drogas é infundada? Não. Mas é mais controverso do que o uso de drogas no mundo do esporte competitivo? Na cena musical? No mundo coorporativo? Não. As drogas, sorrateiras como são, podem se infiltrar em qualquer indústria que gere lucros […] A popularidade do estilo heroin chic ao final do século é uma reação à apatia do sucesso do capitalismo e ao tédio que a cultura pop emanava nos grunge anos 90.”
Na era do ozempic nos 2020s, estamos fadados a repetir a dose de Heroin Chic? Seria a estética corporal das mulheres um termômetro para uma crise política/social? Sabemos que é possível prever uma crise econômica se observarmos a moda, então, acredito que sim: estamos fadados a repetir o passado como uma cobra mordendo a própria cauda em ciclo vicioso.
Infelizmente,a magreza estrema tá voltando